quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O espelho



“Espelho meu, espelho meu: há alguém mais belo do que eu?”
Demoramo-nos demasiado ao espelho. Penteamo-nos, fazemos a barba, pintamo-nos. A origem do desamor deve-se ao espelho. Ou melhor, no que nele queremos ver reflectido. Tudo por causa da invenção do espelho. O espelho foi inventado pelo Diabo, por Lúcifer, por Satanás, por Narciso. O mesmo é dizer que foi inventado pela divisão, pelo que é rebelde, pelo que é a oposição ao amor, pelo egoísmo. O espelho é constantemente mal usado. Só nos queremos ver a nós nesse espelho.  Nem falo do que é de vidro. Mas de tudo o que reflecte. A existência de um espelho é a oportunidade de um retorno de nós mesmos. Retorno sobre nós mesmos é o desamor. É a contemplação, o endeusamento de nós próprios. É fitarmo-nos ao espelho em tudo o que fazemos. É esperar vermo-nos de novo em tudo o que pensamos e geramos.

O Amor é a ausência de espelho. É a ausência de retorno sobre si mesmo. O desamor é o egoísmo do espelho. O egoísmo só admite um movimento, de fora para dentro, de lá para cá. Só dá na medida em que souber que terá um retorno, no mínimo semelhante. É por isso que o amor é desinteressado. Desinteressado positivamente em si. Porque só está interessado no outro. Na verdade, só há amor próprio quando se é capaz de amar um outro que não eu. 



 
“Espelho meu, espelho meu: haverá alguém mais bonito do que tu?”
Deus não se demora ao espelho. Não o tem. Partiu-o. Nunca o utilizou nem nunca o utilizará. Não se penteia, não faz a barba, não se pinta. Não se contempla a si mesmo. O que tem graça, pois o reflexo do Pai, é Ele próprio, mas que é outro, Jesus. E vice-versa. O pai reflecte o filho. O filho reflecte o Pai.  São o mesmo, e são reflexos de um outro. Vivem um para o outro e não chegam a olhar sobre si. Estão longe de si próprios. Muito longe. É por isso curioso ler “quem Me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Jesus não diz: Quem Me vê, vê Jesus. O mesmo diria o Pai: Quem Me vê, vê o Filho.

O espelho não serve para o  amor. Não tem função. Ainda que haja reflexo. Que exercício desafiante este de nos olharmos ao espelho e só conseguirmos ver outro que não nós. Ainda que não pareça à primeira vista, em nós, a pura felicidade, a felicidade eterna, acontece  quando ao espelho vemos um outro, quando há ausência de retorno sobre nós mesmos.

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